Histórias nem sempre precisam de palavras

Uma bela manhã, minha filhinha mais nova, Alice, de seis meses, chorava incessantemente.

Não era fralda suja, não era fome, não era nada de trivial. Era apenas alguma agonia daquelas misteriosas, que apenas os bebês conhecem.

Até pouco tempo, só uma pessoa resolvia isso: Eric Clapton, que conectava-se com ela de uma maneira quase cósmica ao som do violão. Dessa vez, nem ele.

Fiz a única coisa que sabia: comecei a contar para ela uma historinha qualquer, fabricada ali, na hora, e carregada de tons e caras e caretas e sorrisos.

Sim: sei que ela certamente não entendeu uma única palavra do meu enredo louco… mas funcionou.

De repente, as lágrimas sumiram como apenas lágrimas de bebês somem e, instantaneamente, seus olhos gigantes passaram a esboçar um sorriso curioso, interessado, quase que antecipando cada volta que a trama dava.

E, depois, ela simplesmente suspirou e foi dormir.

Histórias para crianças, concluí, funcionam até mesmo quando elas não entendem o que dizemos. Até porque as narrativas estão mais impregnadas nos gestos do que nas palavras.

A calma

Quem tem mais de um filho ou filha saberá do que estou falando.

Basta que a barriga cresça ao ponto de parecer insustentável e pronto: a cabeça do mais velho começa a rodopiar, tensa, angustiada, nutrindo aquela curiosidade agonizante sobre o que acontecerá com ela depois que aquele novo e estranho ser romper a barriga da mãe.

Do nosso lado, não foram poucos os desafios. Houve questionamentos, pavores, tiques, camas molhadas. Houve agonia mútua.

Sim, mútua: que pais não se angustiam, afinal, ao perceber a angústia de uma filha?

Mas não havia muito o que fazer senão perseverar, atentos e calmos. Ser pai também é isso: saber manter a calma e o raciocínio frio até nos momentos mais complicados.

Nessas últimas semanas ficamos ali, equilibrando historinhas tranquilizadoras com tentativas de conversas francas e aprofundadas. Fizemos os nossos cortes, demos as nossas broncas quando elas se fizeram necessárias – mas, sobretudo, fomos medindo e tentando desarmar a angústia.

A irmãzinha nasceu. Os três dias de hospital foram uma espécie de clímax da tensão, um ambiente em que todas as dúvidas sobre o futuro que já se transformava em presente pareceram eclodir. Ficaríamos nós dois, pai e mãe, inteiramente dedicados à filha mais nova e ignorando ela, a mais velha, que passaria a viver com os avós na casa? Nunca mais sairíamos daquele hospital? Aquela seria a nossa nova casa, a nossa nova prioridade única de vida?

Para uma criança de 5 anos, sempre vale lembrar, ainda existem monstros sob a cama. Para uma criança de 5 anos, a cama sob a qual os monstros se escondem muitas vezes se chama ‘solidão’.

Mais papos retos. Mais historinhas.

Até que fomos para casa.

Muitas novas introduções: construir a ponte entre filha mais velha e mais nova é sempre fundamental. O que seria do conceito de família sem isso, afinal?

Nova rotina, visitas de curiosos, avós ainda em casa prestando aquela tão fundamental ajuda com as coisas do cotidiano.

Não sei bem em que momento mas, há alguns dias, as coisas pareceram começar a entrar no que podemos chamar de normalidade.

Tiques sumiram, risos choveram com mais frequência, sobrancelhas mudaram de ângulo. Aos poucos, como todas as mudanças importantes da vida. Mas decisivamente.

No domingo passado, os avós voltaram para Portugal, onde vivem. Foi triste, claro – não há despedida feliz. Houve choros, houve promessas de voltas breves, houve aquelas dores de separação que já eram familiares a todos. Vidas em família também são feitas delas.

Ontem de manhã fui a quarto da minha mais velha acordá-la para a escola. Na noite anterior contei a ela uma historinha sobre uma baleia perdida que encontrara o rumo de casa e voltara para a sua família, seguindo com a vida. O livro fora escolhido por ela -uma escolha perfeita.

O sono foi calmo, inteiro.

O despertar, idem.

Ela foi para a escola tranquila, falante, deixando beijos para a irmã mais nova e ignorando boa parte das manifestações físicas das angústias que por tanto tempo a perseguiam.

Passados ficaram no passado.

Sim, sei que novas angústias certamente virão – a vida, afinal, é um infinito ciclo de perigos e vitórias. Mas aquela vitória, pelo menos, parecia estar assegurada.

Quando a deixei dentro da van, seguindo sorridente, suspirei aliviado, cheio daquela certeza de que tudo dará certo.

Subi o elevador de volta.

Em casa, o chorinho faminto da minha nova recém nascida cortava o silêncio da manhã.

Não eram nem 7 horas e o dia já estava tão cheio de acontecimentos.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Que tal inverter os papéis?

Crianças de praticamente todas as idades (principalmente a partir dos 3 anos) adoram desenhar. Quando ainda não sabem escrever, os desenhos são as suas formas de contar histórias – muitas das quais escondem personagens assustadores, sonhos fantásticos, visões estereotipadas das pessoas que fazem parte de suas vidas. 

Pois bem: e se invertermos os papéis uma noite e fazermos os nossos filhos nos contarem as histórias que criaram a partir das suas ilustrações? 

Os primeiros relatos – pelo menos de acordo com a experiência que tive em casa – serão os mais óbvios: casas são casas, borboletas são borboletas, nuvens são nuvens. Mas parte do nosso papel aqui inclui também ser uma espécie de narrador invisível, coadjuvante. Sim, há uma casa – mas o que se passa dentro dela? Sim, há uma nuvem – mas o que acontecerá quando ela decidir chover? E as boboletas voando? O que elas podem estar procurando pelos céus? 

A coisa mais incrível desse mundo de histórias é justamente esse infinito de possibilidades. 

Sensacional. 

Livros gigantes para crianças pequenas?

Sabe qual o único problema de ler historinhas infantis todos os dias? 

Livros tem finais.

No caso da maioria dos livros para crianças de 3 a 7 anos, esses finais costumam ser rápidos, mesmo porque tratam-se de histórias que se desenrolam inteiras em 20 ou 30 páginas. Como fazer, então? 

Comprar 365 livros por ano? Complicado. 

Acabei arrumando uma solução diferente por aqui, com minha filha: temos 3 tipos diferentes de livros.

  • Tipo 1: livros novos, que ela traz da biblioteca da escola ou que compramos. 
  • Tipo 2: livros que já lemos juntos, mas que ela adora e gosta de reler.
  • Tipo 3: livros grandes repletos de pequenos contos. 

Esse terceiro tipo foi uma baita descoberta, ao menos para mim. Veja: livros infantis precisam ser pequenos, claro, para fixar a história dentro do tempo que uma criança consegue ficar focada. Não adianta muito, principalmente para as mais novinhas, ler obras com 20, 30 capítulos – o interesse acaba desmaiando aos poucos. 

É aí que entram livros de contos ou fábulas: cada capítulo é uma história à parte, sendo que todas se somam em um único fio de raciocínio sutilmente mais amplo. E mais: quando a criança se toca de que estamos lendo apenas uma parte daquele mundaréu de páginas e que as outras partes ficarão para os outros dias, ela vai “aprendendo a aprender”, vai entendendo que nem todas as experiências da vida precisam ser deglutidas em suas inteirezas. 

O que estou falando aqui pode parecer óbvio… mas paternidade é assim: cada um de nós descobre, em nossos próprios tempos, as mesmas coisas que, provavelmente, a maioria de nós já está careca de saber 🙂