Histórias nem sempre precisam de palavras

Uma bela manhã, minha filhinha mais nova, Alice, de seis meses, chorava incessantemente.

Não era fralda suja, não era fome, não era nada de trivial. Era apenas alguma agonia daquelas misteriosas, que apenas os bebês conhecem.

Até pouco tempo, só uma pessoa resolvia isso: Eric Clapton, que conectava-se com ela de uma maneira quase cósmica ao som do violão. Dessa vez, nem ele.

Fiz a única coisa que sabia: comecei a contar para ela uma historinha qualquer, fabricada ali, na hora, e carregada de tons e caras e caretas e sorrisos.

Sim: sei que ela certamente não entendeu uma única palavra do meu enredo louco… mas funcionou.

De repente, as lágrimas sumiram como apenas lágrimas de bebês somem e, instantaneamente, seus olhos gigantes passaram a esboçar um sorriso curioso, interessado, quase que antecipando cada volta que a trama dava.

E, depois, ela simplesmente suspirou e foi dormir.

Histórias para crianças, concluí, funcionam até mesmo quando elas não entendem o que dizemos. Até porque as narrativas estão mais impregnadas nos gestos do que nas palavras.

Historinhas para se divertir

Tá… no post da terça passada eu falei sobre toda essa questão de usar historinhas para criar uma conexão maior com a criança. Não desdigo nada, claro – para mim, esse caminho até as mentes e corações delas é um dos mais importantes que podem existir!

Mas há também o lado mais leve e óbvio da vida: ler para um filho ou filha é criar um momento íntimo de diversão impagável! 

E não é disso – risos e sorrisos, pequenas cumplicidades, olhares conectados pelas palavras de mundos inexistentes – que a intimidade com nossos filhos é feita? E há coisa mais importante nessa relação entre pais e filhos do que justamente essa intimidade, pre-requisito para qualquer outra conexão que possa existir?

Historinhas para se entender

Crianças tem essa característica de se abrir pouco. Falar, todas falam – por vezes aos cotovelos, até.

Mas quando se trata de seus grandes medos, de suas angústias e fantasias de terror… aí tudo muda.

Tendo a acreditar que esses medos infantis – de abandono, de serem preteridos, de não agradarem etc. – são tão colossais que colocá-los em palavras faladas, por si só, já é algo assustador. E nós, pais?

Ficamos pairando em torno das entrelinhas balbuciadas em horas de descuido, tentando formar e organizar esse quebra-cabeças tão infinito que é a mente infantil. E para fazer o que com ele? 

Conversar sempre é bem vindo, claro. Mas há horas que nossas palavras também caem no vácuo, por mais bem intencionadas que sejam. Nosso papel é mais complexo, muito mais complexo: é ensinar os nossos filhos a se entenderem e entenderem as coisas dos mundos às suas voltas sem que ninguém precise colocar em palavras.

E, se não há nenhuma fórmula mágica para isso, há pelo menos um caminho que descobri faz algum tempo: entrar e usar o próprio mundo da fantasia infantil para criar uma conexão maior, mais densa justamente por ser mais lúdica. 

Em outras palavras: livros infantis, histórias contadas na hora de dormir, são mais que um hábito ou passatempo. São como remédios fabulosos, como lições inteiras que, uma vez contadas, farão efeito inacreditável nas mentes e corações dos pequenos. 

Claro: há que se escolher bem a história. Há que se selecionar aquelas que mais tenham a ver com os temores do momento, com as angústias extravasadas naquelas tão discretas e desesperadas entrelinhas do discurso infantil. Como tudo na vida, há que se entender pelo menos parte do problema para se conseguir começar a endereçá-lo.

Mas a mera existência desse caminho, dessa porta aberta para conexão aos pontos mais nevrálgicos da criança, já é um alento.

Há excesso de responsabilidades?

9 entre 10 pais – e estou sendo generoso aqui – dizem que um dos maiores desafios que tem é ensinar os filhos a terem responsabilidade.

Não quero menosprezar a tarefa: em um mundo tão cheio de volubilidades, onde tudo é tão efêmero, sob demanda e ao alcance, entender o conceito de responsabilidade certamente é algo dificílimo.

Mas, às vezes, erramos na dose.

Afinal, enquanto discutimos com os nossos filhos para que eles cuidem melhor dos seus brinquedos, para que mantenham os quartos impecavelmente arrumados, para que limpem as suas bagunças – tudo absolutamente coerente, acrescento – também os entulhamos de aulas e atividades como ballet, judô, técnicas circenses, inglês, espanhol, futebol, piano.

Sim, tudo faz parte da educação. Não questiono isso. Mas deve haver algum limite, alguma linha a partir da qual o peso se torna excessivo. Comecei a perceber isso em casa.

Lá, enfrento os mesmos desafios que, provavelmente, qualquer pai normal. Mas comecei a observar um pouco mais a minha filha mais velha, de 5 anos (a mais nova ainda não completou dois meses de vida). Ela brinca como qualquer criança, diverte-se insanamente, é hipercriativa, inteligente e tudo mais que um pai coruja pensa de sua cria.

Mas, fora de todo esse círculo de elogios, ela também está acumulando momentos de um tipo de cansaço que comecei a considerar excessivo para uma menina tão nova. Esse cansaço não se traduz só em sono, claro: há momentos de malcriação mais fora de contexto, há unhas sendo roídas, há uma ansiedade por acontecimentos futuros tamanha que começamos a evitar contar novidades até que elas estejam prestes a acontecer.

Isso tudo nos fez pensar que, talvez, esteja na hora de diminuir um pouco o rol de tarefas, de aliviar o estresse que nós, pais, às vezes nem nos damos conta de estarmos gerando.

Ainda não sei como e nem o que… mas toda história, todo enredo começa com algum problema posto à frente de seus protagonistas. Certo?

Eis o nosso: dar mais espaço para que uma criança possa ser um pouco mais… criança.

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Conheça a Fábrica de Historinhas

A Fábrica de Historinhas surge de uma parceria entre o Clube de Autores (Brasil) e a StoryTellme (Portugal) com o intuito de modernizar a maneira com que a literatura é trabalhada para crianças.

Em uma era caracterizada pelo excesso de estímulos comunicacionais voltados para a criança por todos os meios existentes, envolvê-la de maneira mais densa no universo de histórias passa a ser um desafio de imensas proporções. Esse envolvimento, no entanto, é fundamental para que a criança aprenda desde cedo a manter-se mais concentrada e a se aprofundar nos mais diversos assuntos, habilidades essas que infelizmente vem se perdendo em uma sociedade crescentemente superficial.

Como solução, a Fábrica de Historinhas inverteu a lógica de se trabalhar histórias para crianças: ao invés de deixá-las como meras espectadoras ou ouvintes de relatos envolvendo personagens terceiros, nós inserimos o próprio universo de cada criança nas histórias.

Assim, a própria criança e seu círculo próximo – pai, mãe, irmãos, avós e amigos – passam a ser personagens em histórias originais e personalizadas. Em outras palavras: produzimos experiências únicas e histórias de fantasia, onde a criança empresta o seu mundo às personagens, podendo ser o herói ou heroína, vilão ou vilã, mascote ou ajudante.

E como ela recebe essas histórias? Em livros mensais, abordando os diversos temas e trabalhando estímulos fundamentais à formação, tanto em formato impresso quanto eletrônico.

Quer saber mais? Acesse www.fabricadehistorinhas.com.br e divirta-se!

A calma

Quem tem mais de um filho ou filha saberá do que estou falando.

Basta que a barriga cresça ao ponto de parecer insustentável e pronto: a cabeça do mais velho começa a rodopiar, tensa, angustiada, nutrindo aquela curiosidade agonizante sobre o que acontecerá com ela depois que aquele novo e estranho ser romper a barriga da mãe.

Do nosso lado, não foram poucos os desafios. Houve questionamentos, pavores, tiques, camas molhadas. Houve agonia mútua.

Sim, mútua: que pais não se angustiam, afinal, ao perceber a angústia de uma filha?

Mas não havia muito o que fazer senão perseverar, atentos e calmos. Ser pai também é isso: saber manter a calma e o raciocínio frio até nos momentos mais complicados.

Nessas últimas semanas ficamos ali, equilibrando historinhas tranquilizadoras com tentativas de conversas francas e aprofundadas. Fizemos os nossos cortes, demos as nossas broncas quando elas se fizeram necessárias – mas, sobretudo, fomos medindo e tentando desarmar a angústia.

A irmãzinha nasceu. Os três dias de hospital foram uma espécie de clímax da tensão, um ambiente em que todas as dúvidas sobre o futuro que já se transformava em presente pareceram eclodir. Ficaríamos nós dois, pai e mãe, inteiramente dedicados à filha mais nova e ignorando ela, a mais velha, que passaria a viver com os avós na casa? Nunca mais sairíamos daquele hospital? Aquela seria a nossa nova casa, a nossa nova prioridade única de vida?

Para uma criança de 5 anos, sempre vale lembrar, ainda existem monstros sob a cama. Para uma criança de 5 anos, a cama sob a qual os monstros se escondem muitas vezes se chama ‘solidão’.

Mais papos retos. Mais historinhas.

Até que fomos para casa.

Muitas novas introduções: construir a ponte entre filha mais velha e mais nova é sempre fundamental. O que seria do conceito de família sem isso, afinal?

Nova rotina, visitas de curiosos, avós ainda em casa prestando aquela tão fundamental ajuda com as coisas do cotidiano.

Não sei bem em que momento mas, há alguns dias, as coisas pareceram começar a entrar no que podemos chamar de normalidade.

Tiques sumiram, risos choveram com mais frequência, sobrancelhas mudaram de ângulo. Aos poucos, como todas as mudanças importantes da vida. Mas decisivamente.

No domingo passado, os avós voltaram para Portugal, onde vivem. Foi triste, claro – não há despedida feliz. Houve choros, houve promessas de voltas breves, houve aquelas dores de separação que já eram familiares a todos. Vidas em família também são feitas delas.

Ontem de manhã fui a quarto da minha mais velha acordá-la para a escola. Na noite anterior contei a ela uma historinha sobre uma baleia perdida que encontrara o rumo de casa e voltara para a sua família, seguindo com a vida. O livro fora escolhido por ela -uma escolha perfeita.

O sono foi calmo, inteiro.

O despertar, idem.

Ela foi para a escola tranquila, falante, deixando beijos para a irmã mais nova e ignorando boa parte das manifestações físicas das angústias que por tanto tempo a perseguiam.

Passados ficaram no passado.

Sim, sei que novas angústias certamente virão – a vida, afinal, é um infinito ciclo de perigos e vitórias. Mas aquela vitória, pelo menos, parecia estar assegurada.

Quando a deixei dentro da van, seguindo sorridente, suspirei aliviado, cheio daquela certeza de que tudo dará certo.

Subi o elevador de volta.

Em casa, o chorinho faminto da minha nova recém nascida cortava o silêncio da manhã.

Não eram nem 7 horas e o dia já estava tão cheio de acontecimentos.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As histórias mais longas

No mundo em que vivemos, uma das lições mais difíceis de ensinar a crianças é que elas não podem ter tudo.

A dificuldade é por motivos óbvios: brinquedos estão por toda parte, há uma centena de canais de TV, há um Youtube inteiro com desenhos sob demanda. Aliás, a raiz do problema é exatamente esta: tudo em nossos tempos é sob demanda.

Só que não adianta brigar contra a modernidade: há que se conviver com ela.

Às vezes, com pequenos ‘nãos’ dispersos pelo cotidiano. Às vezes, com regras mais rígidas que tenham como motivo único ensinar limites. E, às vezes, com histórias.

De que maneira?

Crianças menores, com 4, 5 ou 6 anos, costumam ter alguma dificuldade em lidar com a ‘espera’. Isso se reflete bem em histórias: elas querem ir de capa a contracapa, assegurando-se de que terão completado sagas e enredos sem deixar nada para trás.

Fiz um experimento com isso lá em casa há algumas semanas: comprei um livro imenso de fábulas. Seria impossível lê-lo na íntegra em uma noite só: a única alternativa seria ir de fábula em fábula. Uma por noite. Uma de cada vez. Deixando claro que havia muito mais história para os próximos dias naquele mesmo livro do que o que veríamos naquela noite.

No começo, não foi exatamente fácil. Foi difícil para a minha filha conceber a possibilidade de um livro digerido aos poucos, dia a dia: ela parecia mais ‘movida’ pelo fato de não terminá-lo do que pela história que acabava de ouvir.

Persisti, claro.

E o resultado foi incrível.

Nas noites seguintes, a agonia foi cedendo espaço à curiosidade. Ela já sabia que veria uma história por noite – e ficava ansiosa pela noite e por saber quais novos mundos desbravaríamos naquele livro.

Nos dias seguintes, mais calma começou a transparecer – como um súbito movimento de maturação.

Tudo por causa de um livro grande? Certamente que não: mudanças nunca ocorrem por uma única causa. Mas de uma coisa não tenho dúvidas: dormir com a sensação de falta certamente ajuda a lidar melhor com as angústias naturais relacionadas à saciedade dos desejos.

Mais inúmeras histórias a serem contadas

Até hoje, todos os meus posts foram relacionados a histórias contadas para a minha filha Isa, de 5 anos. E foram descobertas fenomenais, confesso: a cada nova fábula, a cada novo conto, mundos novos foram se multiplicando para nós dois: enquanto as sinapses se turbilhavam na sua cabecinha, eu também acabava descobrindo-a a cada novo brilho de olhar, a cada pergunta interessada, a cada “wow” escapulido dos seus pulmões. 

Pois bem: na segunda, minha segunda filha, Alice, nasceu. 

Nova jornada à vista!  

Claro: Alice ainda terá que esperar alguns anos para começar a receber esse fluxo de narrativas loucas retinas adentro… mas já estou tonto de ansiedade para começar. 

Multipliquemos, então, as histórias. E as descobertas. E esses momentos tão incríveis que temos com os nossos filhos. 

Esta semana sou só felicidade 😉

As histórias de fora

Dia desses peguei um livro que uma amiga minha, enquanto estava viajando pelo Atacama, comprou de presente para a minha filha.

O livro era sobre uma indiazinha que cuidava de llamas e que, um dia, acabou sendo levada por uma tempestade para além das montanhas nevadas e precisava achar de volta a sua casa. A história em si era semelhante às tantas que existem por aqui: falava de medo de abandono, da importância do amor como forma de se enxergar no mundo etc. Nesse caso, no entanto, não era a história que importava tanto: eram os referenciais.

Certamente, a história de uma indiazinha no Atacama deve ser extremamente familiar para chilenos – mas, para uma criança brasileira, pouca coisa poderia ser mais exótica. Enquanto eu ia traduzindo os textos a partir do meu próprio portunhol atravancado, Isa viajava nas imagens das llamas, nas montanhas que se confundiam com nuvens, de tão altas, nos desertos de sal, na própria figura de uma índia andina tão diferente das “nossas”.

Não foi uma história de dormir: foi uma viagem pelo imaginário de um outro mundo feito especialmente para crianças.

Foi uma experiência fenomenal.

Acrescentei, com isso, um item fundamental para qualquer viagem: uma visita a livrarias locais onde possamos escolher novas histórias que abram novos mundos para crianças.

O que mais podemos fazer por elas, afinal, senão abrir esses mundos?

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