Lendo o Pequeno Príncipe

Para uma criança, o Pequeno Principe tem a densidade de um Tólstoi: há solidão, descobertas, perdas, destinos e mortes. Corrijo-me: nem Tólstoi consegue ser tão pesado quanto Saint-Exupéry.

E confesso que havia me esquecido da história do pequeno príncipe até lê-la para a minha filha mais velha, de seis anos. Foi apenas naqueles momentos, em que acompanhei as mudanças em seu semblante e os seus veementes protestos quanto à maldita cobra que o mata no final, que me dei conta da tragédia que estava se desenrolando naquelas páginas. 

Quando terminei, Isa estava triste e enraivada, deixando claro o quanto havia detestado aquela história tão carente de finais cor-de-rosa.

Mas sabe de uma coisa? Foi, até hoje, a história que mais a fez mergulhar em seus próprios pensamentos sobre… digamos… a vida. 

Como sei disso? Porque uma sucessão interminável de desenhos começou a ser feita por ela já no dia seguinte. Tudo, desde o encontro com o aviador até a rosa protegida pela redoma no pequeno planeta do príncipe, havia se transformado em pintura. E, entre cada desenho, algum silêncio importante saía de seu olhar enquanto ela percebia o resultado de sua imaginação. 

Ela havia decorado cada uma das partes, por incrível que pareça, e agora estava ali, tentando alinhá-las e materializá-las.

Estava interpretando a história, concluí. 

E concluí também que, enquanto há histórias que servem principalmente para se passar o tempo, há outras com o poder de nos catapultar para dentro de nós mesmos e nos fazer pensar a fundo sobre a vida, encarando de frente e resolvendo nossos maiores temores. 

E não são essas as melhores histórias de todas? As que fazem pensar, raciocinar, sinapsar? 

Para crianças, histórias são degraus importantíssimos no processo de amadurecimento. E, por mais que degraus sejam sempre degraus, apenas parte de uma escadaria infinitamente maior, há aqueles que realmente significam mais.

E como separar jôio de trigo? Essa é a parte fácil: basta aprender a ler os nossos próprios filhos para entender os impactos de cada enredo sobre suas formas de entender o mundo.

Ou melhor: basta aprender a lê-los para, em seguida, entregar a eles as ferramentas que tanto precisam para amadurecerem-se a si mesmos.

Historinhas para se divertir

Tá… no post da terça passada eu falei sobre toda essa questão de usar historinhas para criar uma conexão maior com a criança. Não desdigo nada, claro – para mim, esse caminho até as mentes e corações delas é um dos mais importantes que podem existir!

Mas há também o lado mais leve e óbvio da vida: ler para um filho ou filha é criar um momento íntimo de diversão impagável! 

E não é disso – risos e sorrisos, pequenas cumplicidades, olhares conectados pelas palavras de mundos inexistentes – que a intimidade com nossos filhos é feita? E há coisa mais importante nessa relação entre pais e filhos do que justamente essa intimidade, pre-requisito para qualquer outra conexão que possa existir?

Historinhas para se entender

Crianças tem essa característica de se abrir pouco. Falar, todas falam – por vezes aos cotovelos, até.

Mas quando se trata de seus grandes medos, de suas angústias e fantasias de terror… aí tudo muda.

Tendo a acreditar que esses medos infantis – de abandono, de serem preteridos, de não agradarem etc. – são tão colossais que colocá-los em palavras faladas, por si só, já é algo assustador. E nós, pais?

Ficamos pairando em torno das entrelinhas balbuciadas em horas de descuido, tentando formar e organizar esse quebra-cabeças tão infinito que é a mente infantil. E para fazer o que com ele? 

Conversar sempre é bem vindo, claro. Mas há horas que nossas palavras também caem no vácuo, por mais bem intencionadas que sejam. Nosso papel é mais complexo, muito mais complexo: é ensinar os nossos filhos a se entenderem e entenderem as coisas dos mundos às suas voltas sem que ninguém precise colocar em palavras.

E, se não há nenhuma fórmula mágica para isso, há pelo menos um caminho que descobri faz algum tempo: entrar e usar o próprio mundo da fantasia infantil para criar uma conexão maior, mais densa justamente por ser mais lúdica. 

Em outras palavras: livros infantis, histórias contadas na hora de dormir, são mais que um hábito ou passatempo. São como remédios fabulosos, como lições inteiras que, uma vez contadas, farão efeito inacreditável nas mentes e corações dos pequenos. 

Claro: há que se escolher bem a história. Há que se selecionar aquelas que mais tenham a ver com os temores do momento, com as angústias extravasadas naquelas tão discretas e desesperadas entrelinhas do discurso infantil. Como tudo na vida, há que se entender pelo menos parte do problema para se conseguir começar a endereçá-lo.

Mas a mera existência desse caminho, dessa porta aberta para conexão aos pontos mais nevrálgicos da criança, já é um alento.

Escolas se adaptando à realidade

Educar crianças nunca foi uma missão fácil: há dogmas curriculares, choques de geração, quedas de interesse e incontáveis desafios no caminho entre as disciplinas e as pequenas mentes que, em tese, deveriam absorvê-las. 

Mas o problema, ao menos a meu ver, não é o desafio em si: é o inacreditável conservadorismo das escolas, em especial das brasileiras, que insistem em manter os mesmos métodos do século XIX mesmo cientes de que as suas eficácias são inquestionáveis. Pense bem: faz sentido, hoje, fazer alunos decorarem matérias, evitarem colas em provas e interagirem uns com os outros apenas em esparsas ocasiões? 

Ora… se a escola deveria preparar os alunos para o futuro, porque insistimos tanto em nos prender a realidades de passados tão distantes? Não seria mais efetivo, para ficar apenas em um exemplo, ensinar os alunos a pesquisar conteúdos na Internet durante as provas – incentivando a cola bem feita – ao invés de testar a capacidade de suas memórias? Qual o importante, afinal? Que ele “aprenda a aprender” ou que decore algo que fatalmente esquecerá uma hora depois da prova? 

Voemos para fora do Brasil. Na Finlândia, dezenas de escolas estão experimentando métodos bem diferentes. Ao invés de currículos rigidíssimos, quase vitorianos, eles selecionam temas que estejam em pauta no cotidiano (e que, portanto, já atraem o interesse das crianças) e distribuem as matérias em torno deles. Por exemplo: se o tema é “mudança climática”, eles criam projetos que envolvam matemática, história, geografia e até conceitos básicos da economia para que os alunos aprendam, sempre em grupos e com base em aplicações práticas, cotidianas, os conhecimentos que precisam ter. 

Bem melhor, não? Esse mesmo tipo de método tem se espalhado pelo norte da Europa, gerando alunos muito mais interessados e preparados para o futuro. E nós, aqui no Brasil? 

Certamente há uma ou outra escola com métodos mais interessantes – mas elas são a ampla minoria. Resultado? 

Enquanto o mundo muda para produzir cidadãos mais engajados e apaixonados pelo conhecimento, nós seguimos impondo tabuadas e cronologias de datas inúteis. 

Que nós, pais, consigamos compensar esse conservadorismo escolar engajando os nossos filhos à nossa maneira. 

A colcha mágica

Ganhamos, nesse último final de semana, um presente incrível para a minha filha mais nova – que completa um mês amanhã -da sua madrinha: essa colcha mágica abaixo.


Por que é mágica?

Perceba que ela não é, exatamente, só uma colcha: é um cenário.

Ela vem com bonequinhos de pano. Vem com um livrinho de história. Vem, portanto, perfeita para embrulhar uma criança de fantasias.

Sim: uma criança de menos de um ano com certeza não se apegará às nuances de um livro infantil tradicional. Mas cabe ao mundo que a cerca, do qual nós, pais, fazemos parte, desenvolver essa vontade de se encantar.

Ainda não usei a colcha – mágica por envolver a criança, literalmente, em um sonho – com a pequena Alice. Mas oportunidades certamente não faltarão.

Teatrinhos provocando risos, enredos fabricando sinapses, vozes despertando curiosidades: há presente melhor para uma criança que algo que permita tanta magia?

A agonia de não entender uma gravidez

“Papai, não quero que meus filhos saiam da minha barriga”.

Minha filha disse isso há pouco mais de um mês, quando fomos ao hospital ver o meu sobrinho chegar ao mundo. Não havia me dado conta do quão disruptivo para uma criança deve ser essa imaginação do parto.

Há, afinal, uma criança que cresce (sabe-se lá exatamente como) dentro de uma barriga – e uma saída para o lado de fora que, a julgar pelas contrações e pela óbvia suposição de um corte, certamente traz dores alucinantes.

Sim, mais de 30 dias se passaram – mas em mais 30 dias, aproximadamente, sua irmãzinha também nascerá, repetindo essa imaginação aterrorizada do que é um parto em sua mente.

Como qualquer pai faria, tentei explicar da maneira mais inteligível possível como se dá esse processo todo e como, no final das contas, ele é sempre bom. Não senti muita confiança no seu olhar: sendo homem, o que poderia eu saber de uma gravidez?

Minha mulher também tentou e, apesar de ter mais sucesso que eu, não conseguiu tirar esse medo da sua pequena mente.

Preciso recorrer a livros infantis, a historinhas que elaborem isso melhor.

Difícil é achar algo nessa linha.

Little boy hugging his mother belly.
Little boy hugging his mother belly.

A geografia de uma criança

Às vezes, quando me pego contando alguma história para a minha filha de 5 anos, esqueço que alguns referenciais simplesmente não existem para ela.

Para uma criança, o mundo é feito de familiaridades temporária e geograficamente dispersas entre si, descoladas, desconectadas. É um mundo tão diferente que sequer nos damos conta do que estamos contando.

A África, por exemplo, é uma terra com savanas por onde passam leões caçando girafas – mas que também divide espaço com os mesmos prédios pichados e avenidas largas que ela está habituada a ver na São Paulo que vivemos.

Esses prédios são tão onipresentes quando o céu e o arco-íris, aliás.

A Austrália não é muito diferente da África – basta trocar leões e girafas por cangurus.

A Europa, por sua vez, é uma grande Suécia pontilhada de castelos encantados e banhada pelo delicioso clima do sul da Itália. Exceto por Portugal, claro, que na verdade se resume ao apartamento de seus avós.

Há ainda, em sua cabeça, outros mundos que não se encaixam exatamente em continentes: o Egito com suas pirâmides, a Grécia com seus Deuses, a Babilônia com suas torres. Todos eles existem, embora não se saiba ao certo onde ou habitado por quem.

Estados Unidos? Não é exatamente um lugar. Tem os vulcões do Havaí e os belos prédios brancos de Washington, além de um louco artificialmente bronzeado que volta e meia aparece na TV para tomar o tempo de seus desenhos.

São visões de partes, de pequenas histórias ainda sem muita noção de espaço e tempo que, um dia, se costurarão em sua cabeça.

Um dia.

Talvez o marco do fim da infância seja justamente o momento em que esses lugares incríveis se fecharem no mesmo mundo e se dispersarem por muitos tempos.

Um dia, antes que isso ocorra, vou pedir à minha filha que desenhe o mundo tal qual ela o enxerga.

Será a história de todas as histórias.

z_p14-your-world

Fantasias inventando histórias

Primeiro, foi da Frozen. Depois, da Ariel.

Em seguida, as princesas (finalmente!) cansaram e começamos a inventar piratas, fadas, macacos mágicos.

Depois ela se entregou ao calor: queria mesmo era ficar de biquini (mesmo que se dissesse, em alguns momentos, uma vampira).

Fosse como fosse, minha filha passou esses últimos dias brincando de ser personagens. E nós?

Nós ficamos no entorno, dando volume à imaginação com histórias que se encaixassem nas suas fantasias. Nos transformamos em livros sendo escritos em tempo real, meio que por acidente, de maneira totalmente colaborativa. Criamos ondas de sorvete, céus com tempestades tumultuando os vôos das fadas e unicórnios, selvas brilhantes, oceanos de Nutella, torres mágicas, sofás voadores.

E quer saber? Foram histórias sensacionais essas – todas absolutamente diferentes das que costumamos comprar em livrarias. Todas, inclusive, bem mais empolgantes.

A descoberta do Carnaval, ao menos para mim, não poderia ter sido outra: deveríamos deixar as próprias crianças escreverem as histórias. Poucos adultos, afinal, conseguem chegar a um pico imaginativo como o delas!

carnavalbanespa

(Agora, se me dão licença, está na hora de experimentar alguma fantasia nova – o Carnaval só termina amanhã!!!)

O terceiro olho

Estava atravessando a sala para pegar um copo de água na cozinha quando me deparei com minha filha de 5 anos correndo para cima e para baixo com um adesivo de brilhante colado à testa.

Chamei ela em um canto:

– Você sabia que tem um povo, lá do outro lado do mundo, que acredita que nós temos um terceiro olho exatamente onde você colocou esse brilho?, perguntei.

– Não… mas eu não tenho outro olho aqui, não é, papai? É só um adesivo!

– Depende. Dizem que é um olho invisível a partir de onde se percebe as coisas, se imagina as coisas que a gente não vê de verdade. Eu, pessoalmente, acho que é o olho da nossa imaginação. Quando você vê duas bonecas e inventa uma brincadeira, você está dando vida a coisas que não existiam até então. Você está enxergando com sua imaginação o que ninguém mais vê. E não é para isso que serve um olho? Para enxergar?

Ela parou, pensativa. Olhou ao redor.

– Então ali tem um castelo!, concluiu, apontando para o aparador. E no meu quarto tem três casas com amigas brincando!

Uma sucessão de lugares mágicos se abriu imediatamente, todos sempre repletos de detalhes e descobertas impressionantemente nítidas.

Depois de um tempo ela parou, novamente, me olhou fixamente nos olhos e disse, com uma expressão que só adultos costumam carregar:

-Você é um bom pai.

E saiu correndo para o quarto para brincar no seu mundo.

Isso foi na segunda passada.

Pelos próximos dias ela colou o adesivo na testa e não parou de inventar novas brincadeiras com seu “terceiro olho”. Com o tempo, claro, o adesivo acabou desaparecendo embaixo de algum sofá e ela não se lembrou mais dele. Mas uma coisa acabou ficando muito clara: ali, naquela historinha de segundos que contei para a minha filha no meio da sala na noite de uma segunda-feira qualquer, algumas sinapses novas foram geradas e a sua imaginação foi exercitada como tem que ser.

Ali também acabei concluindo que, aos olhos de uma criança, ser um bom pai ou uma boa mãe é algo intimamente ligado a saber exercitar a ilimitada imaginação infantil, é saber dotá-la de insumos, de ferramentas, para que ela mesma possa viajar mais livremente pela sua própria realidade individual. Em outras palavras: é saber guiá-la com as histórias certas nos momentos certos.

É provável que a história do terceiro olho e todo o episódio acabe caindo no esquecimento. É provável até que já tenha caído, aliás. Mas as sinapses, os exercícios mentais, ficaram – e não é isso, afinal, que realmente importa quando se tem 5 anos de idade?

(Fora isso, confesso em um tom mais egoísta, fez um bem tremendo ao ego ouvir um elogio gratuito desse de uma filha na difícil (e sempre recheada de falhas) tarefa de ser pai!)

maxresdefault

PS: Sim, eu sei que há muito mais sobre o terceiro olho do que eu contei. Mas convenhamos: estamos falando de uma criança de 5 anos, né?