Ciúmes e histórias

Quando Alice, minha filha mais nova, nasceu, os ciúmes da Isa, a mais velha, foram inevitáveis.

Não que tivessem sido ciúmes pesados, recheados de malcriações e birras – o estilo dela é outro. Foram ciúmes muito mais recheados de silêncio, de olhares discretamente preocupados sempre que as atenções de todos estavam voltados para a irmã, de mudança de hábitos e comportamentos para emular a forma com que nós, adultos, lidamos com um bebê.

Para um pai, não foi exatamente fácil testemunhar um silêncio tão audível, tão palpável. Nunca é fácil ver uma filha sofrer, mesmo que por fatos tão humanamente comuns quanto o nascimento de uma irmã. Mas sabia que não adiantava muito afogar o silêncio com palavras quaisquer: às vezes, é preciso deixar o tempo ensinar a digerir as pequenas gigantescas dificuldades da vida.

Foi o que fizemos em casa: nos mantivemos a uma distância saudável, sempre ao alcance, sempre mostrando que o amor não diminuíra em nada, mas sempre respeitando o tempo dela. 

E fomos vendo os efeitos dia a dia a partir justamente da linguagem universal que desenvolvemos em casa: as histórias. No caso de uma criaça de seis anos, os desenhos.

Cada desenho que ela fazia desvendava um pouco os seus momentos. Nos primeiros, havia pai, mãe e bebê em primeiro plano e ela lá no fundo, do tamanho de uma pequena flor; depois, ela fazia par comigo e deixava a mãe no outro canto, com a irmã; em seguida, bastava eu viajar a trabalho por um dia e pronto: ia eu para o cantinho da obscuridade enquanto às três ficavam juntas, imensas, no centro. Isa passou meses experimentando formações familiares, inventando enredos, criando cenas. Meses.

Até que, de repente, meio que da noite para o dia, me deparei com um desenho em proporções dignas de Da Vinci onde estávamos todos lá, completando um quadro completo como deveria ser.

Comecei a observar mais de perto: ainda havia – como ainda há – os momentos em que olhares silenciosos denunciam algum tipo mais secreto de ciúmes… mas a segurança é outra.  É como se o medo tivesse lentamente cedido espaço à noção de que as atenções realmente não poderiam mais girar exclusivamente em torno dela. Algo saudável, eu acrescentaria.

Mas o mais extraordinário de tudo isso, em minha opinião, foi o processo em si. Afinal, tudo o que fizemos foi observar de perto, tecer talvez micromudanças no cotidiano e deixá-la construir a sua própria história, subindo cenas e estruturando enredos por conta própria.

Crianças, concluí, são sempre as melhores autoras das suas histórias.

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